A adolescente
boia em descanso após atravessar o rio a nado. Esquadrinha o céu límpido à
procura de nuvens naquele início de tarde. A água tépida de verão lhe acaricia
o dorso.
– Vem, Luti, vem!
Convida o
enorme cão preto – porte indicando alguma nobreza – que se mantém inabalável,
olhos fixos no rio. Ele está com preguiça hoje, ela pensa. Vira momentaneamente
o rosto para a margem, vê o cachorro levantar uma das patas dianteiras em direção
às orelhas. Espantando as moscas, imagina. Ele era assim, feito gente, cheio de
manias, aquele seu companheiro. Não pode contar com o Luti hoje.
A mocinha
flutua no rio, íntima dele desde a infância. Distraída, embala-se nas águas, o
corpo inicia um giro, alheio ao seu comando. No começo, devagar, depois, o ritmo
aumenta, levando-a para outra parte onde o cálido é substituído pelo frio. O
choque térmico lhe aguça os sentidos, percebe a água em círculos sob ela, a
aragem, seguida de um farfalhar; a lembrança de frio percorrendo o corpo quente
até há pouco. Seus olhos, cegados pela claridade abrem-se para a sombra inesperada.
Busca o azul, só encontra réstias do sol, filtradas pela copa densa das árvores,
que parecem girar.
Ela
leva um susto ao avistar o paredão verde se precipitando no rio. Está no temível
poço do sumidouro, reconhece. É arrastada para a margem onde o mato sai direto
do rio, borda íngreme, se esparramando morro acima, quase na vertical.
Instintivamente respira pela boca. Antes que consiga nadar, vislumbra num átimo
o tronco caído. Sente a pancada na fronte, o líquido penetra-lhe pelo nariz,
invade os pulmões, numa ardência
insuportável.
Submerge.
Na
semi-inconsciência percebe um clarão, está na pracinha da cidade, árvores
frondosas por companhia. O vento levanta-lhe os cabelos cacheados, o brinquedo
rodando, rodando, seu cão correndo ao redor, o sol lhe queimando as bochechas,
a coroa de cabelos dourados em volta do rosto. Ouve a própria voz, em eco:
– Mais rápido,
mais rápido! Os risos do parque se distanciam.
Paira.
Entre ela e as
árvores, agora a cortina líquida, turva, o peito estufado, o ardido na
garganta. A sensação de asfixia sob água causa grande pressão nos ouvidos. Não
quer ficar ali. Tenta nadar, as pernas, musculatura rígida, impotentes, não lhe
obedecem. Move os braços devagar,
arrisca descer ao fundo interminável. Precisa de um impulso para subir à tona. O
peito queima na descida, descobre um tronco sobre o leito do rio, assustador.
Reúne forças
num impulso, irrompe à superfície, o ar lhe enche os pulmões, busca caminho
entre a água que lhe atrapalha o respirar. Debate-se no rodopio das águas, como
que esquecida do nadar, sabedoria desde criancinha. É puxada novamente ao
fundo. Está no poço do redemoinho. Luta por subir, resta-lhe pouco ar.
Anseia por
viver, apenas. Tem intimidade com o rio. Só mais um impulso, suplica. Vê a luz
surgindo. Coordena os braços em pá. Ainda submersa, esbarra no cachorro que lhe
arranha as costas, tenta arrastá-la. É o Luti. Estende os braços cansados sobre
o dorso do amigo. A água agora morna. Escapara finalmente do sumidouro. Bate as
pernas devagar apoiada no cão, busca um local além da ribanceira, onde possa
alcançar a terra.
Sobe ofegante
até um platô, atira-se sobre a cama de folhas que lhe grudam no corpo. Assim,
extenuada, aconchega-se ao amigo; sente o coração dele acelerado. Ouve o
murmúrio costumeiro das águas mansas do rio Jaguari, seu berço de toda uma
vida. Deixa as lágrimas escorrerem, lhe aquecendo a face. O cão uiva baixinho, a
cada soluço dela, num diálogo inteligível somente a eles, parceiros de longa
data.
Parabéns...
ResponderExcluirEs uma ótima escritora!
Aiai... que sorte ser sobrinho dessa tia incrível! Virei fã do blog!
ResponderExcluirQue lindo Rackel !!!!
ResponderExcluirValeu, Jocemar!
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