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Mostrando postagens de agosto, 2009

Dissimulação

Queremos a supressão da capacidade de ler nas entrelinhas. Dói demais perceber o real sentido das palavras quando elas são combinadas de forma a nos omitir algo, a induzir-nos a raciocinar de forma pré-determinada pelo interlocutor, coisa que o nosso sininho interior se nega a aceitar. Estamos ficando mais sabidos com as mensagens subliminares. Queremos a faculdade de não olhar nos olhos, porque corremos o risco de enxergar uma máscara por detrás do sorriso e nos perdermos naquilo que virmos. Se nos bastasse perder o instante, o fato em si, não haveria problema. Mas não há como dissociar a pessoa à nossa frente, da atitude que ela está tomando no momento em relação a nós, claramente dissimulatória. Não precisamos enxergar os meandros de ninguém, já que os nossos próprios nos dão trabalho o suficiente. Tampouco cada um de nós é anjinho o bastante para também não fazer uso das mesmas táticas quando confrontados, instados a fazer aquilo que não queremos. A tendência é encararmos como defe

Rebobinando a fita

Andarilhos profissionais costumam ser acometidos por surtos de saudosismo. Nas andanças vê desfilar aos seus olhos o filme de uma vida ao deparar-se com a cumplicidade atávica que encontra em cada uma das comunidades onde vive por certo período. Não raro, deixa-se invadir por um misto de inveja daqueles que partilham uma história comum com tudo a que tem direito e que lhes confere compreensão imediata entre seus membros. A comunicação, por exemplo, se faz de maneira instintiva, sem palavras até. Um olhar, um cenho franzido é suficiente para que se compreenda o contexto, os sentimentos, o que se quer transmitir. É ou não é de dar inveja, num mundo minimalista em afetos como o nosso essa sensação de clã que quem vive muito tempo junto compartilha? Se nascer, crescer, constituir família e morrer no mesmo lugar era característica de um Brasil rural, hoje a pirâmide se inverteu. A desocupação do campo inchou a periferia das grandes cidades e de favela em favela, alguns escapam da redoma da

Paradoxo

Alma minha, Essência que me anima Estás tão gelada, Quanto a geada que me cerca? Será, maninha Que queres que eu me perca Em tantas madrugadas Que povoam minha existência Gelada? Como podes estar gélida, Se eu aqui estou? És tu que me soltas, Que acende em mim a faísca Que faz com que eu siga à risca, O que o destino me traçou. Mas que destino é este, Que mais parece peste, Com este caos que se abate, Às vezes sobre mim? Que me faz ter mil anos, Cometer tantos enganos? Resta ser caldo ainda, Cultura em início de vida Borbulhando desencontradas, Alma por ser nascida Na negritude do começo, Mas que, ao primeiro tropeço, Vislumbra a caminhada, Que aparece de repente, Uma eternidade inteirinha, Que se tem pela frente.

Jogo de Palavras

Dizer que foi o receptor da comunicação quem se equivocou é uma atitude cômoda para o emissor, porém arriscada, já que a conversa pode se encerrar por ali. Quando lançamos mão do tradicional “você é que não me entendeu”, estamos transferindo para o outro a responsabilidade pelo equívoco que nós mesmos provocamos. Na prática, a nossa atitude em si é arrogante, pois não admite a possibilidade de erro e ainda por cima se exime das conseqüências, como se fôssemos donos da verdade e só a nossa versão é que contasse. Seria muito mais humilde e receptivo trocar a mensagem por “eu não me fiz entender”. Acalma o interlocutor e de quebra nos dá fôlego para uma segunda chance. Ocorre que na maioria das vezes nos utilizamos dessa tática com a melhor das intenções e com o honesto propósito de esclarecer a idéia que queríamos transmitir. Como a resposta vem de imediato à nossa mente, estamos convictos que esta forma de se expressar é correta e tanto cremos nisso que a reação é automática e não enten

Certezas

Há momentos em que o interlocutor quer arrancar de nós uma resposta a todo custo. Só que não é uma resposta qualquer. Além da nossa afirmativa ele procura se convencer e exige que tenhamos argumentos que o satisfaçam, que tiremos todas as suas dúvidas. De quebra, ainda se reserva o direito de esboçar o famoso sorrisinho irônico de Mona Lisa do século vinte e um e lançar o golpe de misericórdia: “Tem certeza?”. Antes que o rosto fique num vermelhão, a boca mais rápida que o cérebro e lancemos um monte de impropérios para cima do convencido, respiramos fundo e com esforço contido dizemos: “Certeza só a morte. Ainda assim para quem não acredita em Deus”, acrescentamos ao tradicional bordão que se lança mão quando alguém nos coloca contra a parede. A vida parece nos exigir certezas continuamente. Como se fosse vital acertar a cada atitude que tenhamos. Vamos juntando um amontoado de valores e a certo ponto nos perguntamos o quê daquilo tudo sobra para acreditarmos mesmo, o que é certo. Se

O Pacto

A impotência é uma sensação perigosa e quando ela se instala, o sentimento é de que nossa vida não mais nos pertence e perdemos o controle sobre ela. Sem perceber, abrimos mão da capacidade de interferir no nosso próprio destino, convictos que nenhuma atitude nossa vá mudar o curso dos acontecimentos. Sucumbimos ao fatalismo, à suposta ausência de sorte, ao pré-determinado por um destino que se incitados a clarificar, não sabemos dar forma ou concretizá-lo. O destino é assim. Cômodo, fácil e nos provoca aquilo que mais queremos fazer nas horas de desespero: Sofrer. Ah! Como um sofrimentozinho faz bem. Quanto mais descemos na nossa angústia, parece que o fundo do poço ainda está longe e incita a curiosidade mórbida de descer mais. Não queremos mais o domínio. É boa a sensação de se deixar levar pelo sabor das ondas. Detalhe: Não somos nós que estamos conduzindo nossa vida. Estamos nos deixando levar. Daquilo que não tomamos parte, que não fomos chamados a decidir, também não nos comprom

Agosto

Luz, quanta luz! Se eras tanta Porque fugiste Deixando-me só? A essência não inspiro Ressecam-me, Fazem-me fenecer, Só a noite escura, A chuva gelada A garganta ressequida. Há poucos resquícios Há pouca vida Para ser vivida. Quero um crédito, Uma cota a mais Porque este ano? Por quê me desengano? Será que é profano Implorar ao infinito Que me deixe ficar? Eu peço, contrito, Mais tempo... Há tanto Que quero fazer. Há trilhas a percorrer Preciso do sol, De novo no rosto Preciso passar De novo, Por este agosto Aí, com certeza, Terei em seguida Onze meses adiante De mais vida Inexorável. Até que o novo agosto Volte... Implacável

Civilidade

Segundo a consultora de moda Glória Kalil, “estamos em um momento de individualidade que traz coisas positivas, mas ela é perigosa, pois podemos nos esquecer do outro. Temos que olhar, ver o outro e ter o compromisso com a civilidade”. Traduzindo para o dia a dia das pessoas comuns, não tão glamourosas quanto a Glória, o que seria civilizado para nós? Gentileza, bons modos, estilo? Tudo isso mais uma palavrinha que parece fazer parte só das camadas mais altas da sociedade, porém acessível a todos nós, sim: Elegância. Também é uma palavra diretamente ligada com imagem, transpira futilidade para aqueles cuja batalha maior é garantir a sobrevivência do dia seguinte. Movidos a necessidades básicas, soa gozação falar em elegância com esse público, mas é inerente a quem tem conteúdo, mesmo que sequer tenha conta bancária. Viemos nesse mundo para evoluir. E como arremata Glória Kalil, na entrevista à revista South Star, “imagem é importante, mas com conteúdo. E conteúdo passa pela civilidade,

Trivializar o anormal

Sabe aquela sensação que temos diante de algum problema e o nosso íntimo demonstra que não há o que fazer? E não é por preguiça ou covardia. É quando sentimos que só a nossa parte não basta, que por mais que façamos será inútil, não vai mudar um milímetro sequer. É um misto de prepotência com impotência. Prepotência porque ao nos convencermos de que não há nada a fazer, criamos uma visão particular da situação e o mundo ao redor está cego. Portanto, estamos trazendo para nós o papel de donos da verdade. Situações como o momento político atual, acionam a sensação de impotência. É só ligarmos a TV para percebermos que o novelo da crise não termina nunca, confinando-nos à posição de meros expectadores. A coisa está tão bizarra, tão complicada, que a verdade em si há muito se perdeu no emaranhado de versões dos mensalões e mesadões, escândalos no Senado, quem mentiu ou não e por aí vai. O que importa agora é quem consegue construir uma verdade mais consistente que a outra, condizente com a

Quem tem medo de Joan Brossa?

O calor daqueles últimos dias de janeiro era insuportável e mesmo assim não resistimos ao desejo de visitar o MARGS -Museu de Arte do Rio Grande do Sul-. Estava em cartaz uma exposição do artista catalão Joan Brossa , de Barcelona ao Novo Mundo. Chegamos um pouco antes do horário e de cara encontramos o museu em obras e com o ar condicionado sem funcionar. Na primeira sala de exposição, correntes pendiam do teto instigando-nos a olhar para cima e uma placa na parede indicava o nome da obra: Correntes de Dâmocles . Levamos um susto e veio o pensamento inevitável e quem estava conosco percebeu: “Estas correntes estão prestes a cair sobre as nossas cabeças!” Era uma obra de arte contemporânea . Uma instalação? É difícil imaginar o que o autor queria expressar com a obra, mas se era impacto, conseguiu. Há objetos que trazem referências explícitas ao casamento, como as algemas com um de seus lados substituídos por uma pulseira cravejada de pedras que lembram brilhantes. Este tipo de art

Incautos e impulsivos

Como lidar com os nossos extremos? Supervisão constante ou privação de oportunidades? Escolhas, simplesmente. E só contamos conosco para traçar um mapa mental do terreno a cada decisão, consolidar o sistema até que o cérebro acostume-se a buscar interesses que preencham a sensação de estar perdendo algo quando se diz um não. Por detrás da expectativa da perda há uma diminuição da exposição desnecessária a riscos. E quando se tem uma inaptidão natural para detectar mentiras, somos de certa forma, uma ameaça ambulante à nossa integridade. Quando as ferramentas internas são insuficientes para lidar com algumas situações, vale apostar na precaução. O mundo interior de quem tem pouco senso espacial é voltado para as palavras e não precisa de imagens, pois a mente formula diálogos sem necessidade delas. Detectar pequenas diferenças em expressões faciais, por exemplo, é quase impossível. Não porque não queira, mas por não ter o artefato necessário. Quando tomamos decisões sem pensar, cremos n

Desajeitados

Para quem é desajeitado o senso espacial e a memória visual são suficientes para andar por aí com segurança. Não se lembra de carros ou rostos que viu pouco e crê piamente que a sua parte do cérebro responsável por espaço e formas só tem só neurônio paralisado. Deve ser por isso que não achamos a menor graça naquele mico que pagamos na infância ou adolescência, quando fomos ridicularizados na frente de todo mundo e aquela amiga insiste ainda hoje em dar gargalhadas homéricas só de lembrar, cada vez que nos encontra. Quando crescemos numa mesma cidade a adolescência desajeitada é acompanhada por todos aqueles com quem compartilhamos aquela fase. E ela passa muito lentamente, de maneira irritante para nós e percebida pelos companheiros de forma divertida, às vezes deixando um buraco na nossa auto-estima, já naturalmente combalida no período. Se não éramos bons no esporte, por exemplo, levamos a falta de jeito incapacitante vida afora, porque se existe habilidade cuja aquisição não se dá