Pular para o conteúdo principal

Domínio


A luta permanente do vice-presidente brasileiro contra o câncer que o acompanha há anos é motivo de admiração pela maioria de nós. Por mais que sua visão da doença seja irrealisticamente positiva aos nossos olhos é contagiante e digna de aplausos a maneira insistente como ele enfrenta a moléstia, situação em que muitos já teriam entregado os pontos. Mas não. Paralelo à sua obstinação em lutar, nós que o acompanhamos pela mídia, insistimos em procurar naquele sorriso permanente dele, um ar de representação. É inevitável especular sobre qual papel ele está desempenhando, se é para nós ou para ele próprio buscar forças e assim dominar o inimigo instalado em seu corpo. Domínio, esta parece ser a palavra. A doença já o acompanha há doze anos e ele aparenta desdenhar dela. Como quem ignora um espinho no pé e segue caminhando. De vez em quando pára, faz um curativo, ajeita a pisada, mas nem por isso deixa de seguir em frente. A vida continua, apesar da doença. Não fosse um quê de malignidade que um câncer traz, a despeito da evolução da medicina, talvez não fosse o mesmo objeto de admiração e enfrentamento.
Milhares de pessoas convivem diariamente com doenças muito mais dolorosas e incapacitantes por longos períodos e isso lhes tira a qualidade de vida. Mas mesmo assim, insistem em viver, procuram alternativas e seguem num nível razoável de felicidade que minora o seu incômodo e daqueles que estão ao seu redor. Monitoram-se e com isso enfrentam a “companheira” de todos os dias sem se deixar subjugar por ela. Cremos que há uma espécie de competição entre pessoa e doença, porém sem ódio ou autocomiseração por ter sido atacada com o sofrimento que a convivência proporciona. Outros se deixam entrevar dia após dia e rendem-se ao padecimento. Não se quer dizer aqui que transformar as agruras que a doença traz é apenas uma questão de atitude mental derivada da vontade. A ilusão positiva precisa de mecanismos internos, funcionamentos mentais não afetados pela sua estrutura física em si, que viabilizam a competição da(s) parte(s) preservada(s) em prol da cura. Se outras estruturas físicas ou mentais estão danificadas, não há como esperar a postura de enfrentamento pelo doente, já que esse não possui ferramentas para tal. Na pior das hipóteses, a automelhora protege da negatividade que impede a busca pelos mecanismos da cura, mais fortalecidas e confiantes.
No fundo, as pessoas normais e saudáveis distorcem de certa forma a realidade para criar um mundo mais gentil do que na verdade existe. Para quem convive com a enfermidade, como José Alencar, qual o problema de criar para si um raciocínio parecido? Convém lembrar, quando se fala de doenças com um alto grau de letalidade, que a esperança é uma dádiva, mas tem seu lado sombrio: Ela dá mais que toma, mas sem ela essa vida seria um osso duro de roer.
Precisamos manter um senso pessoal de invulnerabilidade e segurança, para continuar vivendo e motivar os outros a fazê-lo. Principalmente quando se é uma pessoa pública como o vice-presidente. É difícil criar um sentido para a nossa existência que nos satisfaça. O mundo nem sempre parece justo e o otimismo, difícil de ser sustentado. A vulnerabilidade é relativa e é insustentável constatá-la todos os dias. Ainda assim, para seguir vivendo, não se pode desistir da esperança, da boa vontade e da alegria. E que venga El toro, não é cidadão José Alencar?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Jogo de Palavras

Dizer que foi o receptor da comunicação quem se equivocou é uma atitude cômoda para o emissor, porém arriscada, já que a conversa pode se encerrar por ali. Quando lançamos mão do tradicional “você é que não me entendeu”, estamos transferindo para o outro a responsabilidade pelo equívoco que nós mesmos provocamos. Na prática, a nossa atitude em si é arrogante, pois não admite a possibilidade de erro e ainda por cima se exime das conseqüências, como se fôssemos donos da verdade e só a nossa versão é que contasse. Seria muito mais humilde e receptivo trocar a mensagem por “eu não me fiz entender”. Acalma o interlocutor e de quebra nos dá fôlego para uma segunda chance. Ocorre que na maioria das vezes nos utilizamos dessa tática com a melhor das intenções e com o honesto propósito de esclarecer a idéia que queríamos transmitir. Como a resposta vem de imediato à nossa mente, estamos convictos que esta forma de se expressar é correta e tanto cremos nisso que a reação é automática e não enten...

A Lei de acesso à informação. Cuba e Angola: Empréstimos com carimbo de "SECRETO"

  Aproveitando o debate que tivemos hoje em aula sobre a abertura ou não dos arquivos dos tempos da repressão, comentamos matéria publicada em 09/04/2013, pela Folha de São Paulo, de autoria do jornalista Rubens Valente, intitulada Brasil coloca sob sigilo apoio financeiro a Cuba e a Angola. A notícia de que o governo federal, através do Ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, classificou como secreta a documentação que trata dos financiamentos do Brasil aos governos de Cuba e Angola surpreende e, poderia passar despercebida de todos nós. Certamente, os meios de comunicação ficaram sabendo disso através do artigo 30, inciso II, da Lei nº 12.527, de 18/11/11, a Lei de Acesso à Informação, que prevê a publicação anual pela entidade máxima de cada órgão responsável do “rol de documentos classificados em cada grau de sigilo. O cidadão comum, que em 2012 festejou a publicação da chamada Lei de Acesso à Informação, pode se indagar:   “Que tipo de documento pod...

Do lar (Ou profissão em vias de extinção)

Ainda vigora nos contratos comerciais e bancários o uso da expressão “do lar”, para se qualificar a mulher que não trabalha fora. Há mulheres que ao serem indagadas da profissão informam que não trabalham. Por não laborar, entenda-se serviço doméstico. Exatamente. Aquelas tarefas anônimas, executadas diuturnamente pelas mulheres. O apoio logístico delas permite aos homens exercer com liberdade as mais variadas profissões, já que o controle da prole e as múltiplas funções, que o ato de criar filhos implica, estão em boas mãos. Sob o pretexto de educarmos os filhos, acompanharmos o marido, muitas de nós se tornam reféns da família. É claro que o trabalho doméstico pode ser uma opção. Mas não pode em hipótese nenhuma, tornar-se uma obrigação. Entre uma guerra mundial e outra, as mulheres pegaram no batente nas fábricas, nas escolas, nos escritórios e descobriram que podiam desempenhar tão bem quanto os homens as mesmas atividades que eles. Com os maridos na frente de batalha elas acumul...