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Pena é um sentimento dispensável


Alguém passa à frente de um lar de idosos numa manhã de outono. Alguns conversam, mas a maioria está calada, olhar distante, como se fitasse o infinito. Esta aparente desconexão com o mundo leva quem passa a dizer "coitados!". A cena se repete com frequência e alguns dos internos já não querem mais tomar o banho de sol ali na frente. Uns pouco escutam, outros não enxergam direito e muitos cuja dificuldade é a locomoção, preservam os sentidos em dia e são os que se aos poucos se recolhem ao fundo do pátio. "Coitado, uma ova", revelam-nos depois. "Eu estou muito bem aqui. Não preciso da pena de ninguém". Velhos todos seremos e mais dia menos dia alguma função do corpo, vital ou não irá se degenerar, mas isso não é motivo para se fazer de vítima. O papel de vítima é confortável, embora como tudo na vida tenhamos que pagar um preço por ele. É louvável o arroubo de dignidade em não se prestar a tal papel.

As dificuldades físicas são um prato cheio para a acomodação. É a desculpa perfeita para justificar o desejo que os outros tenham peninha de nós. Qualquer um reage diante do sentimento de pena. Não gostamos de nos sentir um traste inservível. O resgate da dignidade se impõe ante a simples menção de que estamos sendo incapazes de resolver sozinhos alguma situação ou tomar determinadas atitudes. Queremos igualdade na restrição. Ainda que tolhidos por doença, idade, dificuldade de enfrentamento das situações, não abrimos mão do direito de escolha quando nos convém mostrar-nos excluídos.

A auto-exclusão é uma resposta àquela que o meio nos impõe por estarmos fora do padrão, um recurso que usamos quando alguém quer que façamos algo por ele mas que para realizá-lo precisamos lançar mão de algum sacrifício. Esta demanda de força extra torna o ato não-natural, deixando de ser espontâneo aquilo que fazemos com algum dano físico ou emocional a nós. É claro que nada se faz seja em proveito próprio ou de terceiros que não vá gerar uma carga de vontade ou de trabalho e em consequência, esforço. Mas gastar nossa reserva de energia ou contrariar nossa vontade em prol de outros, quando até para nós mesmos iríamos pensar duas vezes antes de se empenhar, já é demais.

Por mais que se tente o altruismo, sempre se cobra algo em troca seja em que "moeda" for. Assim, faz parte do treino para o NÃO, evitar auto impingir-nos posturas que fomos "convencidos" a adotar. É até perdoável promover a auto-exclusão em benefício próprio, baseado em uma dificuldade real de atender a determinados pedidos. Difícil é caracterizar a limitação das pessoas. Ou ela é ostensiva ou seu portador é um coitadinho e não se pode esperar nada.

Não é difícil perceber quando alguém está se esforçando para fazer o "seu" melhor e não custa valorizar sem apelar para a piedade o trabalho de quem faz o "seu" máximo. Não é sacrifício algum respeitar o direito de calar-se ou de não ser incomodado.

Se queremos de verdade ajudar este público que primeiro entendamos o seu mundo, visitá-los sem impor nossa presença, sem gerar expectativas que não possamos cumprir, para a partir daí interagir e colaborar de igual para igual. Limitação não é sinônimo de pena e de solidão. Quer ajudar? Seja voluntário. Use a sensibilidade para descobrir como fazê-lo e ao encontrar o caminho, seja constante. O primeiro ímpeto é fácil mas as pessoas se afeiçoam a nós. Abandonar porque cansamos ou perdemos a graça, nem pensar. Todos nós temos os nossos defeitinhos de fábrica e ninguém está no padrão. O processo de inclusão e exclusão que nos é impingido é diuturno. É fácil exercitar. Experimente.

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